quinta-feira, 15 de dezembro de 2022

Aftersun

 

Sou agnóstico, um ateu sem tanta convicção que acredita em alguma coisa. Por muito tempo andei perdido diante da necessidade de acreditar em algo. Não por alguma imposição social ou convencional, era mais por me ver perdido sem ter a quem recorrer naqueles momentos de dúvida, do leve desespero ou na torcida para que algo dê certo. Recentemente, depois de uma conversa com minha amiga e taróloga Marisa, descobri que minha espiritualidade se encontra nos meus discos. É onde me acalmo, acho repostas e procuro entender a vida.

 

Mas no final de semana passado, minha compreensão de espiritualidade se expandiu diante de tantos acontecimentos que contrabalanceavam em meio peito entre coisas boas e ruins. No sábado, eu tinha meu programa agendado: almoçar com Érico; ir à tarde ao pocket show e lançamento do vinil da Silvia Machete no ótimo e surpreendente Caverna do Rock; terminar a tarde na Balsa, minha parada obrigatória em São Paulo; e, por fim, seguir para Pinheiros para assistir o show da Black Mantra e Monkey Jhayam.

 

No entanto, na manhã desse mesmo dia fui tomado por uma notícia da partida de um parça querido, que não me saiu da cabeça nenhum minuto sequer, dentro de sentimentos bons de descobertas e generosidade mixados com perda, paternidade, sentimento de invasão e um sentimento de surto eminente.

 

Logo no início dessa tarde tomei o rumo do GPS que me levaria andando de Higienópolis para o Centro, sem saber que passaria por uma tarde eufórica dentro da Boca do Lixo. Tenso, mas firme, cheguei na Caverna do Rock e o que era tensão se transformou em ternura, diante do que, possivelmente, virará um dos meus locais favoritos de São Paulo.

 

O evento era um Live PA de Silvia e o lançamento, em vinil, de seu ótimo álbum mais recente Rhonda. A Caverna do Rock ocupa alguns apartamentos deste prédio no Centro, que estavam divididos entre uma sala com fliperamas, máquinas de Pimball e um DJ tocando vinis (claro); uma sala com discos e muitos equipamentos analógicos à venda; e o que parecia ser a sala principal, com uma bela mesa de frios, um rapaz fazendo coquetéis, sessão de autógrafos, fotos e uma TV passando Inglaterra X França. Conversas maravilhosas, bebidas de graça, pessoas generosas, reencontros e novas amizades. Não poderia ter uma tarde melhor. Mas até que melhorou quando fui para a Balsa, que sempre tem uma good vibe.

 

Mas, saindo de lá, estou em um taxi na Avenida São João, bem na entrada da Boca do Lixo, e pá, dois jovens metem a mão dentro do carro, pegam meu celular (que estava com 1% de bateria) e desaparecem em frações de segundos. Chego em casa para bloquear tudo, inclusive contas, mas já era tarde. Desbloquearam meu celular (já se sabe há tempos que iPhones não tem mais aquela segurança de sempre) e conseguiram fazer um Pix da minha conta. Bom, todo mundo que já foi roubado ou perdeu o celular sabe a dor de cabeça que é, sobretudo quando sua vida é invadida.

 

Após aquele desesperinho não me restava muita coisa no dia seguinte se não seguir para o Balaclava Fest, onde, cercado de amigos, pude exorcizar a melancolia cantando Undertow, do Alvvays, a plenos pulmões. Voltei pra casa com uma sensação melhor, como se o baque dos acontecimentos fosse, mais uma vez, curado com a música.

 

Na segunda-feira, meu último em São Paulo, numa tarde chuvosa caminhei pela Augusta atrás de presentes de Natal para a minha família e, depois de ler uma breve sinopse, entrei no cinema para assistir ao filme Aftersun, estreia da cineasta escocesa Charlotte Wells.

 

O que posso dizer, daqui em diante, é que esse ano vi muitos e muitos filmes bons graças à curadoria de plataformas de streaming como Mubi e Reserva Imovision. São dezenas de filmes independentes que se acumulam entre os favoritos de 2022. Mas nenhum deles vai ficar profundamente marcado no meu peito como Aftersun.

 



O filme fala sobre paternidade, acima de tudo. É uma história autobiográfica que vai muito além de uma egotrip e retrata uma relação de pai e filha como nenhum outro filme moderno fez. Talvez a carga dramática do filme pese mais em quem é pai, mas, de qualquer forma, todo mundo é filho. Então nisso o filme vai bem além de uma história bem contada. Eu chorei no final, sem acreditar que aquele recado era pra mim. Não pude ver a hora de encontrar meu filho e dedicar toda a atenção do mundo a ele, que os primeiros dias sem celular me proporcionaram e me mostraram que talvez eu precisasse daquilo para dar mais atenção aos seus anseios.

 

Diante dos sentimentos que eu carregava até entrar naquela sala de cinema, pude rever minha espiritualidade em relação à arte, no geral. A cura e as respostas estão em sinais que o Universo dá. Eu sei, essa abstração dá no saco, mas precisei escrever sobre isso para entender um momento em que pude olhar o mundo de outra forma.

 

Me considero uma pessoa otimista na maioria das vezes. Recentemente meu carro estava estacionado e foi batido por um cara que fugiu e não deixou rastros, deixando eu e minha família três meses sem carro. Fui assaltado por dois garotos e tive a conta bancária invadida por hacker do mal. Entre outras coisas, alguns acontecimentos mais pessoais marcaram um registro de coisas que preferia não ter passado. Mas não tenho como achar que Mercúrio retrógrado fudeu meu ano, ou que passei por uma onda de acontecimentos ruins e que estava numa “maré de azar”. Os acontecimentos bons se enfileiraram no meio, tive um ano de excelentes resultados profissionais, muitas viagens e uma família linda em casa. Tenho filmes, discos, shows e livros na minha frente. 


Não posso ser mais sortudo do que sou. 


E o que deu ruim, deu bom.            

 

 

sábado, 17 de setembro de 2022

Atrás de Plastic Bertrand

 


 

Foi no filme francês Rock ‘N Roll, de Guillaume Canet, de 2017, que a música Ça Plane Pour Moi voltou a tocar dentro da minha cabeça. Consegui ir a França em dezembro de 2021 a trabalho e nas minhas garimpagens acabei esquecendo de procurar o Plastic Bertrand. E então tive a chance de voltar a Europa no verão de 2022, quando decidi ir atrás desse disco, que achei que seria super fácil de achar. E não foi.

A primeira loja de discos que fui na França foi na pequena cidade de Saint Nazaire. O dono da loja achou que tinha, fez uma busca e nada. Me disse que não seria difícil achar. Segui tranquilo. Já em Paris, me senti um pouco inseguro de ser julgado pela minha busca por aquele músico que parecia uma mistura do Pequeno Príncipe com o Pablo de “Qual é a música?”.

Até que lá pela terceira loja - das mais de 10 que fui – tomei coragem e falei pro rapaz: “Pardon, não me leve a mal e nem me julgue, mas eu queria o disco do Plastic Betrand”. E ele disse que isso jamais seria motivo de julgamento, pois ele era muito cultuado na França inteira. Ele estava absolutamente certo. E lá tinha um álbum, mas sem Ça Plane Pour Moi. Não levei. Entrei em mais três lojas e nada, e comecei a ficar preocupado. Até que em uma delas, o dono me disse que seria bem difícil eu conseguir o disco com essa música, que ele mesmo só tinha o single de Ça Plane Pour Moi, um grande hit de 1978 que nunca envelheceu.

Entrei na Discogs, achei apenas coletâneas, mas vi quem tinha o disco na França e mandei mensagens tentando fazer a compra pessoalmente. Não deu também. Mas o motivo de ter quase desistido veio quando entrei na Gilbert Joseph, que quando perguntei o atendente deu uma risada e disse que seria impossível eu achar. Ah, filhadaputa... Me meti numa busca insana pra calar aquela risada debochada. Achei um compacto de 7” numa sessão de usados a 3 euros. Esfreguei na cara dele, que disse “ah, tinha esse, né? Mas o álbum dele mais conhecido é muito difícil de achar”. E era mesmo.

Ainda busquei por mais algumas lojas, mas nada feito. Próxima parada: Berlim. No meu último dia, tive a companhia de Rodrigo da Mata, que me levou a várias lojas. E então paramos na frente da pequena loja Franz & Joseph. Ele disse “ó, aí eu não entro, o cara é um babaca. Vai lá que te espero aqui”. Chequei primeiro a bandeja de fora, e de cara já tinha “Gosh it’s...”, do Bad Manners, por 10 euros. Aí tem! Entrei, vi ele por ali olhando com certa desconfiança um casal jovem. Já estava com Bad Manners, um single de Cristal, do New Order e o Licensed to III, dos Beastie Boys, que daria de presente pro Rodrigo. O dono olhou o que eu tinha nas mãos e deu o que poderia vir a ter sido um sorriso.

E aí quem surge na minha mão? Plastic Betrand, edição alemã da época, o primeiro álbum AN1, exatamente o que estava buscando, por 10 euros! PEGA, PORRA! Embora tenha me contido, talvez o pequeno salto de alegria que dei poderia me entregar.

Fui em direção a ele pra pagar. Ele olhou os discos, pegou o de Plastic Bertrand e disse: “Very nice album. I forgot I had this one here”. Gelei, mas acabei abrindo minha boca e falei que tinha andado a “França toda” atrás desse disco e não imaginava encontrar ele ali, principalmente, custando 10 euros. Por que eu disse isso, caralho? Mas então foi quando ele pôde ler minha alma e eu a dele, e num momento divindo entre um vendedor e um colecionador de discos, a honestidade brilha mais forte. Ele poderia ter pegado o disco da minha mão e não me vender. Era dele, eu não poderia fazer nada. Mas não fez isso, e saí de lá achando a vida mais linda, o céu mais azul, o calor uma delícia e direto para uma cerveja, pra comemorar. Na verdade, comemorar e ficar ainda mais irresponsável comprando discos bêbado.

No final, havia um motivo grande de eu não achar o disco na França. Plastic Bertrand é Belga, de Bruxelas, e sua carreira foi toda por lá. E embora seja vizinha da França e com o mesmo idioma, a Bélgica também é vizinha da Alemanha. Então as chances eram iguais, mas o destino foi mais sagaz.




segunda-feira, 12 de setembro de 2022

LOJAS DE DISCO EM PARIS

Em dezembro de 2021 e agosto de 2022 estive em Paris a trabalho. Da última vez, em pleno verão de férias escolares, a cidade ficou para os turistas. Algumas lojas de disco até fecham suas portas durante esse período, mas, para a minha graça, a maior parte delas segue aberta. 

Como estava com 5 days offs, percorri muitas lojas e fiz uma tremenda garimpagem atrás de oportunidades e discos baratos. 

A pedido do Ricardo Spencer, que vai pra lá em breve, fiz mais do que uma lista de lojas, mas uma pequena resenha das que mais gostei na capital francesa: 



Le Silence de la Rue
Faidherbe 75011 Paris


 




Curiosamente virou minha loja favorita de Paris. Muita coisa indie anos 90 e atuais, ótimas coletâneas de Dub e Afrobeat. Os preços são os melhores de todas as lojas que percorri na cidade. O dono é um sósia de Larry David, com humor peculiar e típico de dono de loja de discos. Na primeira vez que fui, em dezembro de 2021, pedi um desconto porque estava comprando muitos discos, ele apenas me olhou e balançou a cabeça lenta e negativamente. Daí disse que eu tinha ao menos que tentar, e ele sem olhar pra mim soltou um “nice try”. Dessa vez comecei minha busca pela loja dele já garantindo bons discos a preços ótimos. É só não tentar puxar conversa, se ater à sua garimpagem e o tratar como motorista, perguntando apenas o necessário.




Pop Culture
23 Rue Keller, 75011 Paris





  



Não muito distante do ar blasé (afinal, essa palavra veio de lá) e monossilábico do Larry David dali de cima, o dono também responde o necessário, mesmo que você saia com um disco do Fugazi e outro do Jefferson Airplane. Claro, tem a ver com o fato de ter que se comunicar em inglês, e nesse ponto temos que ser completamente compreensíveis. Minha busca maior foi por títulos indie, punk e clássicos, e nisso a loja me abraçou bem. Levei também um compacto split do Redd Kross. Mas a Pop Culture é uma beleza, pois além dos discos tem muito quadrinho e miniaturas nerds lindíssimas. Uma perdição no sentido de gastar um dinheiro que só servirá para enfeitar sua sala e impressionar um amigo invejoso.

 

Rede O’CD
12 Rue Saint-Antoine / 26 Rue des Écoles / 24 Rue Pierre Lescot  / 46 Rue du Commerce




Fique bem ligado na garimpagem destas quatro lojas. Algumas tem menos discos que outras, mas é lá que você encontra preços super justos por discos que foram apenas deflorados no plástico, mas estão impecáveis de novo. Deu pra pegar o Entertainment!, da Gang of Four, por 18 euros, e um The Revolution will not be televised, de Gil Scott-Heron, por 21 euros. Há sempre uma bandeja fora da loja com preços bem especiais, inclusive de muitos títulos franceses. Consegui muitos singles de pop francês dos anos 1960 e 1970 por 1 e 2 euros. Os vendedores são atentos, sabem informar e, olha só, até conversam um pouco. Eu sei que um deles me deu bola por causa da minha camisa do Iggy Pop. É isso, a gente joga com as armas que tem.

 

Lucky Records
66 Rue de la Verrerie

Preços altos demais e muita coisa pop. Uma ótima cilada para turistas desavisados, pois a localização é muito central e pega muitos visitantes. A grande vantagem dessa loja são os discos franceses de promoção na bandeja do lado de fora da loja. E outro detalhe importante: atendentes muito educados.

 

Paralléles
47 Rue Saint-Honoré

E para continuar falando sobre educação e gentileza, a Paralléles traz isso de cara. Além de discos de vinil, ainda tem CDs, livros e quadrinhos, tudo usado. Comprei apenas um disco da The Band em estado impecável por um valor que não acreditei, e tive que perguntar se era isso mesmo: 8 euros. Depois, conversando com outro atendente da loja, falamos sobre um disco que foi minha grande saga por Paris inteira, o Plastic Betrand. Ele me disse que seria bem difícil conseguir esse disco, pois era uma raridade, e mesmo ele só tinha um single 7” de Ça plane pour moi. A conversa poderia ter sido longa e agradável, mas estava muito calor em Paris e eu já estava rodando desde cedo e doido pra tomar uma gelada.

 

Gilbert Joseph
34 Bd Saint-Michel

Bem melhor que a melhor loja da Fnac, isso define. Na minha primeira vez em Paris, em 2012, fiquei abismado com a loja. Um andar gigante com muitos, mas muitos discos. Na época, minha coleção ainda era a maior parte em CD, e nisso a loja me impressionou demais. Da mesma forma que, quando passei a colecionar vinil novamente, a Gilbert Joseph também virou a chave e agora é tomada por toneladas de discos, com sessão de usados, muita coisa francesa, soul music, metal, indie e eletrônico. Para uma primeira visita, tire uma tarde ou manhã inteira pra ela. Mas a garimpagem precisa ser bastante cuidadosa, pois os discos não são baratos, mas lá a chance é grande de achar algum lançamento que você está buscando arduamente.

 

Walrus Disquaire Café
34 TER Rue de Dunkerque, 75010

Ótimo lugar para encontrar discos de artistas independentes franceses. A loja é pequena, tem um bar-café bem agradável, onde ficam a dona e os dois funcionários. É aquilo, depende bastante do que você compra, que instiga as pessoas a falarem mais com você. Nessa loja, o atendimento foi bem mais atencioso. Comprei dois singles, um de uma banda francesa e outro de Matthew E. White, que estavam com 50% de desconto - creio que os dois saíram por 8 euros. Comprei também um álbum de uma das minhas bandas favoritas, o Spain. Essa banda toca bastante na França, e foi lá que vi um show deles em 2012, em um club muito pequeno. Só em uma loja com acervo dedicado à música independente seria possível achar esse disco, e foi na Walrus.

 

Monsters Melodies
9 Rue des Déchargeurs, 75001 

Deixei a melhor pro final. Foi na O’CD que o funcionário me indicou e disse: “é uma loja cara, para colecionadores, mas talvez seja um dos maiores acervos de discos em Paris”. Entrei já tentando travar o bolso, me prometendo ser objetivo e ir atrás do que estava na minha lista do bloco de notas do celular. Mas fiquei de cara quando entrei na pequena loja, onde não conseguia andar direito com caixas e mais caixas de discos. Pilhas que ficavam em cima de outros discos, mas curiosamente organizados com nomes dos artistas e ordem alfabética.



Deve ter sido aquela situação de que o dono, um senhor de poucas (mas necessárias) palavras, tentou um dia organizar, perdeu o controle e agora virou um grande foda-se. Foi para a Discogs e quem quiser que se equilibre entre as caixas e faça sua garimpagem. Achei o The
Sound of Speed, do Jesus and Mary Chain por 30 euros. Acima do que eu estava disposto a pagar, mas esse disco não estava nada fácil de achar e só mesmo em uma loja como aquela isso seria possível.



Eu enlouqueci com a quantidade de bootlegs que ele tinha. Mas mantive o foco e perguntei pelo Plastic Bertrand, e ele tinha um na loja, mas não era o que eu queria. Me fez ouvir umas músicas do disco no YouTube insistindo que também era um disco legal. Ali vi que o velhinho é bom de vendas. Um alemão com seu filho estavam na loja garimpando. Ele perguntou sobre um disco e o velhinho falou “ah, esse está na minha casa, não tinha espaço aqui. Mas posso trazer amanhã pra você”. Eles dois, eu e um outro inglês, que estava na loja, demos uma risada juntos. Ainda tinha mais discos do que aquilo ali!?




A dona da Walrus me disse que ele já queria se aposentar, vender tudo o que tem na loja (e em casa), mas o que ele tem vale milhões de euros e não consegue vender. Uma loja para se passar uma tarde, mas tem que sair com algum disco de lá. O alemão e seu filho não levaram nada, e não ganharam nenhum “have a good day” como eu ganhei.

quinta-feira, 30 de dezembro de 2021

Darklands no Bataclan




 

No domingo de 5 de dezembro de 2021, fui ver meu quarto show da minha banda favorita, The Jesus and Mary Chain, no Bataclan, em Paris. Num domingo chuvoso e frio, eu e minha amiga, Irema, descemos do metrô e nos localizamos pelo mapa do celular até o acesso ao Bataclan. Quando nos demos conta, estávamos diante de um pequeno túnel que levava ao acesso da rua lateral, onde também ficava a saída de emergência da casa de shows. Foi inevitável vir à memória, imediatamente, os vídeos que circularam depois do atentado que tirou a vida de 90 pessoas no Bataclan, e que estavam ali pelo mesmo motivo que eu: ver uma banda que gosta muito. Por aquela rua, na noite de 13 de novembro de 2015, passavam pessoas sendo carregadas por amigos e deixando trilhas de sangue no chão. Quanto mais nos aproximávamos da entrada, mais memórias dos vídeos me cutucavam a mente, como pessoas que moravam nos prédios ao lado e filmaram, de cima, a fuga desesperada pela saída de emergência.

 

Na fila de entrada, com pessoas animadas para entrar, o sentimento se misturou e entramos tentando driblar a energia alexandrina. Na entrada, ao deixarmos nossos casacos na chapelaria, chequei os bolsos da minha jaqueta para ver se teria alguma coisa ali que eu pudesse deixar pra trás, caso precisasse correr sem o casaco. Foi um pensamento involuntário, movimento do subconsciente.

 

Faltava cerca de 10 minutos para a banda convidada, a ótima Rev Magnetic, de Glasgow, Escócia - mesma cidade do Jesus and Mary Chain. O bar fica numa parte mais alta, uma espécie de mezanino, onde pedimos duas cervejas e ficamos ali, em um longo silêncio até o começo do primeiro show. Eu nunca havia ido ao Bataclan, mas aquela área em que eu estava era familiar por contas das fotos e vídeos que vi sobre o massacre. Ali era a entrada, e a parte mais alta, onde se tinha uma visão maior sobre toda a casa e plateia, e foi onde um dos terroristas iniciou o fuzilamento. Minha amiga é psicóloga e trabalhou com vítimas daquela noite sangrenta. Para ela, claro, o motivo do silêncio era ainda mais profundo. Com a Heineken a 6 euros (custosos 40 reais), tratei de virar a primeira e correr logo pra segunda para afastar aquele sentimento e tentar mergulhar de cabeça no que estaria a vir, que seria o show de uma das bandas que mais amo tocando o meu álbum favorito deles, ironicamente chamado Darklands.



Nos localizamos em frente à housemix, meu lugar de praxe para ver bandas que amo. Na hora do show eu já tinha virado umas 5 cervejas e meu espírito estava mais do que solto para me entregar ao momento. Foi o álbum inteiro, da primeira até a última música, começando com Darklands e a ironia da ocasião “oh something won't let me go to the place where the darklands are”, tirando a verdadeira poesia que sempre me embalava nessa música. Mas cantei junto, de olhos fechados e espantando a treva. Então vieram todas as outras: Happy When it rains, April Sky, Down on me, On the Wall etc. Depois, deixaram palco e voltaram para mais uma série de hits, encerrando com Just Like Honey, deixando o coração de um indie de meia-idade em pedaços. 

 

Claro que o sentimento pesado que havia entrado com a gente no começo da noite, foi embora e o tempo virou. Só me lembrei de novo quando vi as portas de emergências laterais abertas para ajudar na saída do público. Talvez já fosse um procedimento anterior, mas pesou novamente. Por mais que aquele fosse um momento especial, e uma ida ao Bataclan traga sentimentos de felicidade, é impossível não sentir a energia pesada do ataque em massa causado pelo Estado Islâmico. Mas ali, naquela noite, era Jesus no palco.



Momento doidão pós-show nas clássicas cabines de fazer cartão de transporte 



terça-feira, 6 de julho de 2021

Big Jeff Show



2018, Brighton. A banda irlandesa Fontaines DC tocava em um dos diversos pubs e casas de shows que abrigam apresentações do que vai acontecer de mais importante de cena mundial de música indie, no The Great Escape Festival. Espremido na porta, tentando ver alguma coisa daquele show num espaço não privilegiado, noto a presença de um homem loiro, muito alto, ligeiramente largo, que ocupa boa parte da visão na frente do palco. Em algum momento, entre as músicas, alguém da banda (que não o recluso vocalista Grian Chatten) fala no microfone algo como uma piada interna, ou um cumprimento, naquele momento que se entende que já havia uma cumplicidade entre aquele fã e a banda. 


Além de sua altura, cabelos e o rosto que expressava generosamente alguma inocência que, a mim, o associava ao Slot dos Goonies. O braço que empunhava socos no ar, embalando o agito punk, estava tomado por pulseiras de muitos festivais. Eram tantos que seria impossível não notar a presença de adereços como uma marca forte no seu visual. Depois notei que as pulseiras eram uma espécie de objeto de ostentação indie que ia além de ser simplesmente um rato de festivais. 


Geralmente, nos shows, estava acompanhado dos outros produtores brasileiros convidados para o evento que me acompanhavam na delegação brasileira, mas nos outros dias, em muitos dos shows que escolhia assistir só, lá estava ele. Sempre com sua mochila, o guia do festival em uma das mãos e uma garrafa de água de 2 litros na outra, que parecia uma garrafinha em sua enorme mão. Foi quando percebi que se ele estava vendo aquele show, provavelmente eu estava no lugar certo também. Ele começou a virar meu termômetro, e uma referência fácil de achar. The Great Escape Festival tem mais de 300 apresentações acontecendo simultaneamente, em vários lugares da pequena e charmosa Brighton, o que torna quase impossível conseguir ver ao menos 30% dos shows em todos os dias. 


Fui convidado novamente em 2019 para integrar a delegação brasileira convidada pelo British Council. E no primeiro show foda que assisto, quem estava por lá? Falei com minha amiga “fica ligada nesse cara, a gente ver ele em muitos shows”. E era sempre assim, sozinho, feliz, pirando na primeira fila das bandas indies seminais que povoavam aquela programação. 


E então, por esses dias, acompanhando a programação do Festival In-Edit em casa, assisti ao documentário Don’t Go Gentle: A Film About Idles e em determinado momento ele surge na tela dando entrevista: Jeffrey Johns, artista de Bristol, mesma cidade do Idles. Foi como se eu estivesse revendo um grande parceiro, um amigo de longa data que sequer sabia o nome. Mas agora ele tinha um nome. E, pesquisando, cheguei a uma matéria do The Guardian que revela todo o seu talento e seu apelido Big Jeff, um artista plástico com um trabalho belíssimo e super sensível. Sua última exposição pode ser visitada pelo seu site.





Terminei de ler a matéria com o coração cheio, vendo que aquele cara era, acima de tudo, um grande fã de shows e um amante de música, que passou a pandemia criando, produzindo arte e esperando ansiosamente pela volta dos shows ao vivo. 


Eu também espero ansiosamente, Big Jeff, e que a gente se veja ainda em algum show.

quinta-feira, 28 de maio de 2020

Amores em quarentena




PREFÁCIO
Por Marcelo Damaso


Computadores avançam
Artistas pegam carona
Cientistas criam o novo
Artistas levam a fama
(Chico Science)



Sempre que estamos em casa vendo um filme, ouvindo música, lendo um livro ou fazendo qualquer coisa que disponha de tempo e prazer, pensamos “putz, eu poderia fazer só isso na minha vida!”. Mas quando a gente se vê, em uma situação como essa, obrigado a ver um filme atrás do outro, ouvir discos que a gente nunca tinha parado pra ouvir e se aventurar a ler livros com mais de 1.000 páginas a gente, só pra contrariar, pensa “o que é que eu vou fazer com essa tal liberdade dentro de casa?”. Cientistas buscam a cura, médicos e enfermeiros cuidam dos doentes e artistas criam. O confinamento tem seu lado bom, mas o descanso cansa. E chega a hora em que a inspiração bate e a gente não vê outra saída que não seja criar.

E iniciativa desse projeto começo com uma história que me veio à cabeça de duas pessoas vizinhas que se conhecem batendo panela e passam a se relacionar melhor graças à reclusão. Fui escrever. Antes, mandei uma mensagem para o amigo Edyr Augusto, perguntando como ele estava no meio disso tudo. Falei então da ideia de escrever um conto e ele prontamente disse que também escreveria. Surgia então a ideia de convidar alguns escritores para criar um enredo de histórias de amor (umas menos que outras) que se passem durante o período da quarentena imposto pelo enigmático e odioso Corona Vírus.

Foi aí então que falei com o Toni Moraes, dono da editora Monomito, e detentor das principais ferramentas para se publicar um livro de contos nesse momento. A ideia ganhou corpo e logo conseguimos reunir 10 escritores, a maioria confinado em seus lares em Belém. Abraçaram o projeto xs escritorxs: Ana Ruscher, André Takeda, Caco Ishak, Edyr Augusto, Estrela Leminski, Marcelo Damaso, Patrícia Rameiro, Rochele Bagatini, Toni Moraes e Vladimir Cunha. A arte ganhamos do nosso querido Rodrigo Cantalício. O site foi feito pelo Max Delson. A organização e iniciativa foi minha, Marcelo Damaso, e a edição ficou a cargo do Toni Moraes.



O fato é que nesse livro temos gaúchos, goiano, piauiense, paulista e paranaense. E com a proposta de lançar o livro virtualmente em PDF e para Kindle, todos os autores carinhosamente aceitaram o convite para levar um pouco de ficção para as pessoas em casa, uns em termos mais esperançosos, outros em enredos obscuros, mas todos mirando a paisagem apocalíptica dos dias de quarentena.

“Amores em quarentena” é um grande abraço virtual (como o momento permite) de 10 escritores e um artista visual que criaram histórias de amor, solidão, compaixão, tolerância, perda, farra e medo, mas, sobretudo, esperança. Tem duas luzes fortes brilhando: a que a gente não deve ir ao encontro e a que aparece lá longe, no fim do túnel.



Baixe gratuitamente em PDF 




*Essa coletânea de contos é dedicada à memória de Rubem Fonseca.

terça-feira, 9 de abril de 2019

I turn on the light the TV and the radio


Sou dos que ainda assiste TV, escuta música no formato analógico, ainda pego (mesmo que raramente) um taxi pensando em equilibrar a disputa. Ainda presto atenção na letra da música, em filme que não está apenas na Netflix, jogo vídeo game no modo história e tento sorrir para as pessoas na rua sempre que dá. Procuro nas comédias bons roteiristas e pontos que se identifiquem com a minha desgraça pessoal, o que, certamente, faz a graça ter graça.

No entanto, não vou estufar o peito dizendo que pertenço a uma geração, que “no meu tempo isso aí, rapá...” e que pare o mundo que eu quero descer. Da mesma forma que vejo Globo News, acesso a Mídia Ninja. Se escuto um vinil em casa, saio para andar com meus fones felizes em uma playlist do Spotify. Troquei meu carro por um cachorro e andamos de Uber. Não deixo de pagar a Netflix desde 2012, mas nunca deixei de ir ao cinema e baixar filmes. Adoro jogar vídeo game on line e acho bastante graça de memes. E se tem uma coisa que ondei é notícia pelo Whatsapp, sem autor e que, infelizmente, é a que mais se propagada.

Sou um filho do cruzamento da cultura analógica para a digital – o que explica a quantidade de CDs em casa. E se essa cultura que me formou está completamente diferente da atualidade, não sou eu que vou praguejar contra os jóvi.

Trabalhar com música e cultura não é apenas para quem fecha os olhinhos sentindo cada timbre valvulado da guitarra alinhado com uma letra que despedaça o coração, nem estar ligado apenas nas novas tendências, as que balançam a raba, ou apenas sentir o groove e ficar de cara com a performance. É ter o mínimo de sensibilidade artística, consumir, mas se deixar convencer pelos mais novos, pelo hit da cantora de 20 anos, pelas canções geniais do esquisitão e por aqueles mais velhos que nos ensinaram o que a gente finge que não sabe.

Estar atendo à nova geração é não espalhar opiniões ultrapassadas, desperdiçar piadas ruins e entender que está tudo fora de lugar, mas tudo se conectando. O mundo ficou chato pra quem sempre foi chato. Mas também não ficou justo para a quantidade de fiscais que existem. Se a revolução é digital, ela também precisa botar a bunda para fora da janela. Caê sempre disse pra estar atento e forte.